http://www.youtube.com/watch?v=GzYwQ8SOnSoAdoro U2. Como Bono, sou a favor e incentivo a doação de órgãos, de sangue, de dinheiro, de tudo. Na música “Walk on”, Bono canta na primeira estrofe : “Love is not the easy thing, The only baggage you can bring, Is all that you can't leave behind”. (Amor não é uma coisa fácil, A única bagagem que você pode trazer, É tudo o que você não pode deixar para trás).
Acabo de ler “O inventor da solidão”, de Paul Auster, um dos escritores mais geniais da atual literatura contemporânea norte-americana. Como diz meu filho... não se trata de “pagapalismo americano”. Paul Auster é bom mesmo.
O livro me fez lembrar meu pai. E seus últimos vinte e poucos dias internado no hospital, antes de morrer. Ía visita-lo quase todos os dias e o encontrava dormindo boa parte do tempo. Era bom estar perto dele mesmo assim. Entre uma soneca e outra, ele acabava acordando e, muitas vezes, para ser sincero, me acordava também dos meus cochilos em sua companhia. De repente, ouvia-o dizer baixinho... “E aí, bixo! Você por aqui!” Eu apertava forte a mão dele, dava-lhe um beijo gostoso na testa e outro na bochecha e colocávamos as fofocas em dia.
Numa dessas visitas, fui convidado por um médico a doar sangue. Na verdade, esse é um procedimento padrão nos hospitais, em caso de internação. Os pacientes precisam de transfusões e nada mais justo do que a família doar um pouco desse sangue em retorno. Meu pai lembrou ao médico: “Meu filho é O+, como eu”, visivelmente orgulhoso de compartilharmos o mesmo sangue. Esse é o tipo chamado de “doador universal” e pode ser recebido por qualquer paciente, de qualquer tipo sanguineo. E eu daria quantos litros fossem necessários para ajudar meu pai a ir logo para casa.
Para minha surpresa, meu sangue não foi considerado bem-vindo. Eu explico. Antes da doação, passamos por uma entrevista muito simples. O objetivo é saber quem somos, como vivemos, que tipo de hábitos temos, se bebemos, fumamos, se usamos drogas, se usamos preservativos, se temos alguma doença, essas coisas. De repente uma pergunta curiosa, a respeito do lugar onde estava na década de 80. “Eu vivi em Londres, de 1986 a 1988, uns meses na Noruega e depois, até 1995 em Portugal.” A enfermeira, como se me pegasse em flagrante delito e com ar de desprezo pela minha
“vivência internacional”, me interrompeu dizendo: “Infelizmente, não podemos aceitar seu sangue e seu nome agora encontra-se registrado no banco de dados do ministério da saúde, da agricultura...” e mais alguns que não lembro agora.
E finalizou, sentenciando-me: “O senhor não poderá doar sangue em nenhum lugar do Brasil.”
Junto à minha indignação, veio a dúvida, logo esclarecida pela enfermeira, ainda com cara de poucos amigos. Era como se, deliberadamente, eu estivesse ali para infectar todo o hospital com meu sangue impuro. “A senhora pode me dizer o motivo?” E a resposta veio, curta e grossa: “Suspeita de contaminação pelo vírus da vaca louca”...
Hein?!?!?!? Como é que é ?!?!?!?
Pois é. Nem meu pai acreditaria. Ía achar que eu morri de medo da “caceta de agulha” e fugi, inventando uma desculpa estapafúrdia dessas. Mas não. Há uma determinação do ministério da saúde que diz: “brasileiros residentes no exterior durante a década de 80 não podem doar sangue devido ao surto de contaminação da carne bovina na Europa”, pelo famigerado vírus. A explicação é que esse vírus pode permanecer “dormente” na corrente sanguínea e levar muitos anos para se “manifestar” e aí, nada feito. De repente, meu cérebro pode se transformar num queijo suíço, numa barra de chocolate “Suflair”, cheio de buracos e eu caio para o lado, como uma vaca. Definitivamente. Irreversivelmente. Sou uma vaca louca em potencial e por isso, meu sangue não serve.
Voltei ao quarto do meu pai e contei-lhe a história . Rimos até dar dor de barriga. Foi muito bom ver meu pai daquele jeito, se contorcendo na cama do hospital, de tanto rir. “Sai pra lá com esse sangue!” Ele dizia e ria ainda mais.
É possível que o vírus não esteja no meu sangue, é possível que a lei mude, enfim... É possível que meu pai esteja aqui do meu lado lendo comigo, rindo muito de novo, enquanto vou escrevendo. E o amor não é mesmo uma coisa fácil...
Estava pensando nisso à pouco, enquanto olhava da porta do quarto, Danielzinho dando a sua cochilada depois do almoço. Para onde vai esse amor todo quando eu morrer? E se o vírus da vaca louca me pegar?
Paul Auster, ao escrever sobre a morte do pai: “Um dia há vida. E no outro, a morte.”
E o amor, é a única bagagem que podemos levar. É tudo o que você não pode deixar para trás.
Caceta de agulha !!!!!!
(Para a Nanda)